09 abril 2006

Salmonelose


Simplesmente por ser de manhã, ele estava acordando. O hábito há tempos se encarregara de programá-lo para despertar sempre na mesma hora e fazer as mesmas pequenas coisas. Sempre na mesma ordem. Ao seu lado na cama hoje não havia ninguém. Aliás, nunca havia. As únicas vozes que costumavam ser ouvidas naquele pequeno apartamento vinham da televisão. Vez ou outra, por ocasião do pagamento, meia dúzia de palavras eram trocadas entre ele e a faxineira que aparecia uma vez por mês. Fora isso, nada. Sua vida se resumia aos seus hábitos alimentares, higiene e ao trabalho. Este último consumia metade do seu tempo e servia para pagar os dois primeiros.

Ele acordara, mas na verdade não tinha muita certeza de estar desperto ou de querer se levantar. Enquanto metade de seu cérebro pensava nas obrigações para aquele dia e antecipava os movimentos mecânicos que se sucederiam desde colocar os chinelos até chegar no trabalho, a outra observava os pequenos vermes que saiam da parede. Bem diante dos seus olhos, ao lado da cama, era como se o concreto estivesse vivo. Ele se concentrou na cor daquelas minhocas. Elas eram róseas, mas antes que se percebesse sua cor, elas já eram verdes. Não, eram cinzas... Nunca havia parado para pensar como é fascinante a maneira como elas se movimentam. Agora notava que elas pareciam ser todas músculos e elas eram azuis.

Era difícil distinguir a cor exata delas, não por que esta mudasse muito rapidamente, mas porque a mudança era contínua e quase imperceptível. Era um cintilar de minhocas rítmico, sincronizado, que cobria todo o espectro de cores. A cada instante todas as minhocas tinham exatamente a mesma cor. A cada instante, por mais próximo do instante anterior, todas eram de uma cor diferente da que eram no instante anterior. As minhocas cintilantes moviam-se desordenadamente, como se estivessem lutando. Talvez estivessem dançando. Os vermes eram de tamanhos variados e ele percebia agora que cobriam todas as paredes do quarto e começavam a brotar do assoalho.

Normalmente, tal cena lhe provocaria asco, mas ele estava até gostando da mudança. As paredes que o rodearam um dia foram brancas e, quando deitara na noite anterior, eram as mesmas paredes amarelecidas pelo tempo e acinzentadas pela fumaça de cigarros, entre as quais vivia há tanto tempo. Agora havia mais vida. Podia-se perceber, pelos espaços que por vezes apareciam entre os anelídeos, que a própria parede também cintilava, mudando de cor e iluminando-se. Embora não com a mesma cor das minhocas. Na verdade, a cor das paredes parecia ser o inverso da cor das minhocas, como se fosse vista pelo negativo de um filme. As paredes a cada instante eram o negativo da cor das minhocas.

O balé de vermes tomava agora conta de tudo ao seu redor. Além disso, parecia que as cores mudavam cada vez mais rápido. Em pouco tempo era tão difícil acompanhar que as minhocas pareciam ser brancas, tão rápido que mudavam de cor. As paredes, estas eram brancas, mas eram ainda o negativo do branco das minhocas, sem serem pretas entretanto. Deu pra entender? Ele mesmo estava confuso e a cabeça doía ao tentar interpretar. Com aquele brilho ao seu redor, subitamente se viu pairando no nada. Não havia mais minhocas, nem parede brilhando, coisa nenhuma.

“Droga!” - gritou saltando da cama e vestindo as calças antes que seus pés tocassem o chão. Havia perdido a noção do tempo, havia perdido a hora do trem e do trabalho. Meio zonzo, tocou a parede. Não estava procurando as minhocas, mas tentando se equilibrar enquanto calçava o sapato. “Eu não devia ter comido aquela torta fria!”.

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