13 outubro 2005

Boca Preta


- Você está com a boca preta. - Falou em tom afirmativo-acusador-interrogativo. Tudo isso ao mesmo tempo.
- Ah! É que... Eu estava comendo amoras. - Esclareceu sem conseguir ser convincente.
- Hmmm... Ceeeerto, ceeeerto! Sei.
- É sério!
- Tudo bem.
- Você está duvidando? Tá? Tá!
- Imagina...
- Porque você sempre duvida de mim? Porque nós já temos que começar a brigar por causa de umas estúpidas amoras? Antes eu não tivesse dito nada. Antes não tivesse comido amoras. Antes nem sequer existissem amoras. Antes as amoras fossem de outra cor ou ao menos não manchassem a boca. Antes você acreditasse em mim. Se pelo menos você acreditasse em mim... Chuif!
- Você não entende também. Pouco importam as amoras. Não são as amoras que me perturbam. Eu até gosto de amoras, embora eu prefira pitangas, ou mesmo jabuticabas. A questão é se você comeu ou não as amoras. O que me incomoda, Clotilde, o que me deixa puto é a atitude...
- Mas que atitude, João Carlos, que diabos de atitude há nas amoras?
- AAAARGH! Você não compreende meeeesmo!
- Agora, além de tudo, vai me chamar de burra! Pois quem teve de pagar um primo para fazer as provas do vestibular de FILOSOFIA não fui eu! Você lembra disso? Hein? Hein? Quando você me conheceu, você não sabia nem o que é chester, como diria o Nei! E o que foi que você deu pro Ricardo em troca do vigésimo lugar naquele vestibular? Um toca-fitas! Você precisa de um primo e uma porcaria de toca-fitas paraguaio para compensar sua deficiência e agora quer falar em “atitude de comer amoras”. Francamente, João Carlos de Almeida Filho!
- Sem mais acusações, Clotilde! Uma coisa de cada vez. Não fuja das amoras!
- E eu lá sou mulher de fugir de amoras?
- Deixe-me voltar ao ponto principal desta discussão, ou seja, as amoras. Recapitulando: Boca preta, hesitação, uma resposta lacônica e insegura “Ah! É que... Eu estava comendo umas amora”...
- Mas que “umas amora”, seu burro! Eu disse: “Eu estava comendo amoras”.
- Que seja. A sua atitude ao me dar esta resposta é que me incomoda. Esta hesitação, Clotilde, é que está acabando comigo. Eu acredito que você tenha comido amoras, mas você poderia ser mais segura. Você também precisa perder esta mania de achar que eu estou sempre duvidando do que você diz.
Pausa para retomar fôlego e pensar em uma saída. Trocando de tática:
- Clô?
- Não me chama assim! Por acaso eu tenho cara de cabelereira? Hein?
- Clotilde... - Lançou o olhar carente.
- Pronto! Era só o que faltava! Armou toda esta cena e agora quer escapar. Humpf, você acha o que? Que eu vou me comover com esta sua cara de cachorro sarnoso?
- Clotilde, meu bem... - Insistiu no olhar.
Ela virou as costas, com medo de ceder. Pegou a bolsa de cima da mesa e, muito nervosa, procurou os cigarros. Onde estavam os malditos cigarros? Irritada, derrubou a bolsa sobre a mesa. A bolsa bateu na beirada do cinzeiro, que sujou o sofá de chenile.
- Mas que porra! Olha o que você me faz fazer, João.
- Clotilde...
- João?



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