23 novembro 2005

Conto Moral

Mais um dia de trabalho para Afonso, sentado em frente ao seu computador, olhando pro nada. As últimas semanas vinham sendo difíceis. Nestes momentos ele geralmente se transportava para qualquer lugar entre o Caribe e o Boqueirão, onde vivia emocionantes enredos imaginários. Quando voltava a si, tinha perdido uma tarde inteira e ainda tinha de limpar toda aquela baba no peito. Apesar da gosma, procurava gostar destes devaneios, alegando coisas do tipo: “Quando ele se sentisse sem alternativas, ao menos sua mente poderia sustentar a ilusão de que ele era livre”. A verdade era que, além desta motivação profundamente filosófica e tristemente neo-hippie, este era o único tipo de viajem que ele podia bancar, quebrado como era.

Foi quando Afonso pensava em tudo isso e imaginava monstros terríveis a partir de uma mancha nova no teto, que Brigite se aproximou e pulou no seu colo, sem fazer nenhum ruído. Brigite estava carente naqueles dias e começou a se esfregar no seu pescoço, farejar seu peito, lamber seus braços e mãos. A princípio lentamente, depois rápida e sofregamente... Afonso, agora totalmente desperto, correspondia às carícias. Brigite era uma verdadeira gata. Peraí, você não entendeu. Era uma gata, literalmente, do tipo que mia.

Havia três meses que ele a encontrara junto a uma sinaleira, aparentemente perdida. Afonso levara Brigite para casa e, desde então, passou a acrescentar alguns itens à lista de compras: Whiskas, leite em pó, Baygon, areia de gato... Volta e meia se perguntava: "Como será que fazem essa tal areia de gato?".


Voltando ao tema, Afonso estava esgotado, sem conseguir pensar em mais uma linha do seu trabalho, começou a fazer carinho na gata com a ponta da caneta enquanto parecia tentar olhar através da parede. Pensou na sua namorada, nas aulas, no que poderia acontecer no ano seguinte, caso conseguisse mesmo se formar. A esta altura a gata, que originalmente era branca, já estava com as costas totalmente luminosas, pintadas de amarelo fosforescente, pela caneta de marcar texto sem tampa.

Afonso... Afonso era o nome do seu avô - pensou ele e imediatamente se transportou para uma cidade do interior, revivendo alguns fragmentos escolhidos do próprio passado, misturados com outros tantos que ia inventando em tempo real. Sua imaginação consumiu mais meia hora do dia, e o sol já vinha baixinho. Enquanto isso a gatinha ronronava no seu colo. Brigite já estava com o peito pintado agora. Afonso falou sozinho alguma coisa aparentemente sem nexo:

- O que é, afinal, um buraco na parede? Qual seu significado? - ele falou e logo parou, arregalou os olhos e continuou - Pronto! Agora tenho certeza! - falou isso e foi ao banheiro, pegou dois chumaços de algodão e enfiou nas orelhas. Talvez acreditasse que seu cérebro estava derretendo.

- Viu, Brigite? No que é que dá ficar trancado em casa estudando, não sair e tal... Muito estudo e pouco sexo... Ou numa dessas isso até é síndrome de abstinência de cerveja - pensou um pouco silenciosamente e concluiu balançando a cabeça e riu de si mesmo.

- Chega! Hoje não rende mais mesmo - tentou se consolar enquanto salvava o trabalho e desligava o micro.

Ele largou a gata no chão e foi em direção da porta com a intenção de sair de casa e arejar. A gata o seguiu em direção à porta e falou:

- Miau!

Este era o único defeito de Brigite: Suas falas eram sempre previsíveis. Mesmo depois de ganhar intimidade, e de ouvir por tardes a fio o seu dono discursar sobre os mais variados assuntos, não ilustrou-se. Seu repertório e vocabulário permaneceram idênticos. Ainda assim, estas três sílabas foram suficientes e Afonso compreendeu o que ela queria e, antes de sair, deixou que a bichana saísse.

Afonso andava pelas ruas tentando esquecer o trabalho por algumas horas. “Vou tomar uma cerveja”, pensou, e foi mesmo. Enquanto isso a tragédia, o pesar se aproximava. Afonso, que só queria ficar ébrio, não poderia imaginar o que estava para acontecer. ATENÇÃO: A seguir teremos de sexo e violência!

Brigite se aproximou de Amarelo, outro da espécie, tentando chamar sua atenção:

- Miau! - (Eu disse que ela era previsível)

Antes mesmo dela ter miado, não só Amarelo, mas todos os felinos machos da vizinhança já haviam percebido sua presença e se aproximaram. O cheiro dela, o timbre e o tom do miado não deixavam dúvidas de que estava no cio. Logo começou a cantoria, miados, gritos, guinchos e outros ruídos que não cabem em substantivos, mas em onomatopéias difíceis de escrever...

Um vizinho do prédio dos fundos, cujo nome não faço a menor idéia, mas vamos chamá-lo Marco Antônio, queria dormir. Ele trabalhava como vigilante e tinha de dormir, pois ainda faltavam três horas para o despertador chamar. Marco Antônio não agüentou. Sujeito agressivo que era, não perdoava. Sonolento, sem sequer levantar da cama, atirou um sapato ao léu. É lógico que errou, mas ao menos dispersou o bando e acabou com o suingue.

Em pouco tempo, não mais do que cinco minutos, a libido foi mais forte que o medo, ainda mais depois que os animais deixaram de crer na pontaria de Marco Antônio. Os gatos retomaram seu ritual, guiados pelo cheiro e pelas súplicas de Brigite. Cinco minutos de silêncio foram mais que suficientes para que o homem cansado já estivesse roncando novamente. Cinco minutos foram o bastante para que os felídeos acreditassem que a barra estava limpa. Ao perceber a barulheira, Marco foi para a janela. Mesmo sonolento, com os olhos bloqueados pela ramela, M.A. (Marco Antônio) pode identificar claramente um dos animais, pois era um escândalo. “Uma mutação ou uma alucinação?”, pensou M.A. Não importa, ele mirou no ser iluminado, amarelo foscorecente. E acertou.

Na cabeça do animal ele acertou o tijolo que utilizava para erguer os pés da sua cama (recomendação de uma tia, M.A. era asmático).

Pesar... (eu disse)...

Mais tarde. Bem mais tarde. Afonso voltou do bar. Na calçada, antes de abrir a porta e aos pés da do prédio, ele reviu o almoço. "A comida era mais bonita ao entrar", comentou, sério. Entrando em casa, mesmo zonzo, lembrou-se de ir ao terraço pra colocar colocar a sua companheirinha para dentro de casa. Foi aí que ele viu...

Segue então uma dramática época de dor e luto.

Afonso perdeu o rumo. Começou a beber (naquele momento e não parou mais). Deixou crescer a sua ridícula barba, parou de tomar banho, tentou matar o vizinho, não conseguiu, foi preso, foi currado na cadeia (naquele momento e não parou mais), teve uma intoxicação alimentar, rodou na faculdade, perdeu a namorada, seus amigos o deixaram, teve cálculo renal (naquele momento e não parou mais), contraiu dívidas e verminose, encravou uma unha, apanhou feito um cão ladrão, encravou outra unha, perdeu peso, tentou o suicídio, não conseguiu, encravou outra unha, apanhou de novo para não perder o costume, foi solto (condicional), procurou emprego, não conseguiu, começou a puxar carros, começou a puxar sacos, encravou mais uma unha, se cortou com uma lata de salsichas, contraiu botulismo das salsichas, contraiu tétano da lata, teve desinteria, morreu cagando.

Todo conto moral, deve ter uma moral no final. Escolha a sua:

( ) Nunca pinte seu gato com caneta marca texto
( ) Nunca entre para a universidade
( ) Nunca pinte seu gato com qualquer tipo de caneta
( ) Nunca deixe seu gato sair para a rua
( ) Nunca pinte seu gato (com qualquer método)
( ) Nunca tenha um gato


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