17 janeiro 2009

Está chegando a hora


Por muito tempo eu não soube o que é calor nem frio. Poderia ser verão, inverno, noite ou meio dia, pois para mim não faria nenhuma diferença. Não lembro de a fome ter me incomodado. Sério. Eu só tinha de viver um dia após o outro. Aliás, eu só tinha de viver e mais nada, pois nem sequer sabia o que era "um dia após o outro".

Não, eu não estava embriagado. O que aconteceu? Nasci, no dia 20 de Janeiro.








16 setembro 2006

Bombardeio em Valença

Porque estou neste mundo sem Espanha?
Porque não tenho vontade de lutar?
Será que sou mesmo livre?
Não encontro qualquer resistência,
vou para onde quero, é verdade.

Separado da Espanha por nada,
mas nada é tão intransponível.

Me tornei um caixeiro-viajante.
Corro tanto que não me encontro,
mas é quando te vejo que me encontro melhor,
pois há um depósito de mim em ti...




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12 junho 2006

Cosmos

Foram semanas de trabalho penoso. A graxa já fazia parte de seus dedos depois de todo aquele tempo concentrado em rebaixar pistão, testar misturas de combustível, mexer e ajustar a carburação, alterar a relação e tantas outras coisas. E agora estava pronto.

Era uma verdadeira obra de arte. Ele não esquecera sequer de alterar o velocímetro, pois é certo que a escala original não seria suficiente para tentar quantificar as melhorias obtidas em sua lambreta amarela. Dada a partida, ouviu-se um poderoso rugido nunca antes gerado por um scooter deste tipo. Reunindo suas forças para erguer a mandíbula, ele se sentou e preparou-se para o que o esperava.


Saiu de mansinho pela porta da garagem, em direção à estrada de Rio Grande para Santa Vitória do Palmar. Uma tremenda reta de 200 quilômetros de comprimento. Cento e cinqüenta!!! Ele quase não acreditou no que o painel dizia e os carros que ficavam para trás confirmavam. Mesmo assim, resolveu passar para a segunda marcha. Duzentos, trezentos e dez, quinhentos e sessenta... Terceira marcha.


As imagens ao seu redor já não se definiam e as que estavam a frente surgiam e desapareciam rápido demais para serem descritas. Sorte estar viajando em um dia de pouco movimento. O ponteiro do velocímetro, cujo fundo de escala ficava em novecentos quilômetros horários, já se partira a muito e o pedaço que sobrara já havida dado três, quatro ou cinco voltas.

Como não podia ver o que se passava, contou com a ajuda de instrumentos para viajar em sua lambreta. Pelo odômetro ele soube que estava chegando ao seu destino e começou a reduzir. Volta após volta pode observar o toco de ponteiro do velocímetro retornar enquanto Santa Vitória do Palmar quase passava.

Descanso, merecido descanso. Pediu uma Coca-cola em um boteco qualquer. Comeu também um pastel. Tentou pagar.

- São novecentos mil reais - disse o dono do bolicho.
- O quê?
- E tá barato!
- Ma-ma-mas isso é tudo que eu tenho - disse o audaz velocista exibindo uma nota de cinqüenta reais e algumas moedas

Sem entender porque, apanhou. Muito.

De volta para Rio Grande, após repetir a aventura da corrida, já estava um pouco melhor. Entrou em um bar cujo dono era seu conhecido, pretendendo dar notícia do que lhe acontecera. Para sua surpresa, não reconheceu seu amigo. A semelhança daquele que estava atrás do balcão com seu velho conhecido de escola era notável, embora fosse vários anos mais velho.

- O Chico está por aí? - perguntou.
- Eu mesmo.
- Brincadeira? O Chico tem a minha idade! - falou atônito o jovem de uns vinte e poucos anos.
- Só se fosse em mil novecentos e noventa e poucos.

Lembrando-se de uma profusão de informações coletadas nas aulas de física, da revista Super Interessante, do Fantástico e do programa Cosmos, qem que vira Carl Seagan explicar os mais inexplicáveis mistérios, a verdade se revelou a ele. Caiu sentado em uma cadeira e seu queixo com a mesma velocidade mais a velocidade com que se deslocou sua mandíbula.

- A lambreta com a velocidade da luz!!!


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09 abril 2006

Salmonelose


Simplesmente por ser de manhã, ele estava acordando. O hábito há tempos se encarregara de programá-lo para despertar sempre na mesma hora e fazer as mesmas pequenas coisas. Sempre na mesma ordem. Ao seu lado na cama hoje não havia ninguém. Aliás, nunca havia. As únicas vozes que costumavam ser ouvidas naquele pequeno apartamento vinham da televisão. Vez ou outra, por ocasião do pagamento, meia dúzia de palavras eram trocadas entre ele e a faxineira que aparecia uma vez por mês. Fora isso, nada. Sua vida se resumia aos seus hábitos alimentares, higiene e ao trabalho. Este último consumia metade do seu tempo e servia para pagar os dois primeiros.

Ele acordara, mas na verdade não tinha muita certeza de estar desperto ou de querer se levantar. Enquanto metade de seu cérebro pensava nas obrigações para aquele dia e antecipava os movimentos mecânicos que se sucederiam desde colocar os chinelos até chegar no trabalho, a outra observava os pequenos vermes que saiam da parede. Bem diante dos seus olhos, ao lado da cama, era como se o concreto estivesse vivo. Ele se concentrou na cor daquelas minhocas. Elas eram róseas, mas antes que se percebesse sua cor, elas já eram verdes. Não, eram cinzas... Nunca havia parado para pensar como é fascinante a maneira como elas se movimentam. Agora notava que elas pareciam ser todas músculos e elas eram azuis.

Era difícil distinguir a cor exata delas, não por que esta mudasse muito rapidamente, mas porque a mudança era contínua e quase imperceptível. Era um cintilar de minhocas rítmico, sincronizado, que cobria todo o espectro de cores. A cada instante todas as minhocas tinham exatamente a mesma cor. A cada instante, por mais próximo do instante anterior, todas eram de uma cor diferente da que eram no instante anterior. As minhocas cintilantes moviam-se desordenadamente, como se estivessem lutando. Talvez estivessem dançando. Os vermes eram de tamanhos variados e ele percebia agora que cobriam todas as paredes do quarto e começavam a brotar do assoalho.

Normalmente, tal cena lhe provocaria asco, mas ele estava até gostando da mudança. As paredes que o rodearam um dia foram brancas e, quando deitara na noite anterior, eram as mesmas paredes amarelecidas pelo tempo e acinzentadas pela fumaça de cigarros, entre as quais vivia há tanto tempo. Agora havia mais vida. Podia-se perceber, pelos espaços que por vezes apareciam entre os anelídeos, que a própria parede também cintilava, mudando de cor e iluminando-se. Embora não com a mesma cor das minhocas. Na verdade, a cor das paredes parecia ser o inverso da cor das minhocas, como se fosse vista pelo negativo de um filme. As paredes a cada instante eram o negativo da cor das minhocas.

O balé de vermes tomava agora conta de tudo ao seu redor. Além disso, parecia que as cores mudavam cada vez mais rápido. Em pouco tempo era tão difícil acompanhar que as minhocas pareciam ser brancas, tão rápido que mudavam de cor. As paredes, estas eram brancas, mas eram ainda o negativo do branco das minhocas, sem serem pretas entretanto. Deu pra entender? Ele mesmo estava confuso e a cabeça doía ao tentar interpretar. Com aquele brilho ao seu redor, subitamente se viu pairando no nada. Não havia mais minhocas, nem parede brilhando, coisa nenhuma.

“Droga!” - gritou saltando da cama e vestindo as calças antes que seus pés tocassem o chão. Havia perdido a noção do tempo, havia perdido a hora do trem e do trabalho. Meio zonzo, tocou a parede. Não estava procurando as minhocas, mas tentando se equilibrar enquanto calçava o sapato. “Eu não devia ter comido aquela torta fria!”.

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23 novembro 2005

Conto Moral

Mais um dia de trabalho para Afonso, sentado em frente ao seu computador, olhando pro nada. As últimas semanas vinham sendo difíceis. Nestes momentos ele geralmente se transportava para qualquer lugar entre o Caribe e o Boqueirão, onde vivia emocionantes enredos imaginários. Quando voltava a si, tinha perdido uma tarde inteira e ainda tinha de limpar toda aquela baba no peito. Apesar da gosma, procurava gostar destes devaneios, alegando coisas do tipo: “Quando ele se sentisse sem alternativas, ao menos sua mente poderia sustentar a ilusão de que ele era livre”. A verdade era que, além desta motivação profundamente filosófica e tristemente neo-hippie, este era o único tipo de viajem que ele podia bancar, quebrado como era.

Foi quando Afonso pensava em tudo isso e imaginava monstros terríveis a partir de uma mancha nova no teto, que Brigite se aproximou e pulou no seu colo, sem fazer nenhum ruído. Brigite estava carente naqueles dias e começou a se esfregar no seu pescoço, farejar seu peito, lamber seus braços e mãos. A princípio lentamente, depois rápida e sofregamente... Afonso, agora totalmente desperto, correspondia às carícias. Brigite era uma verdadeira gata. Peraí, você não entendeu. Era uma gata, literalmente, do tipo que mia.

Havia três meses que ele a encontrara junto a uma sinaleira, aparentemente perdida. Afonso levara Brigite para casa e, desde então, passou a acrescentar alguns itens à lista de compras: Whiskas, leite em pó, Baygon, areia de gato... Volta e meia se perguntava: "Como será que fazem essa tal areia de gato?".


Voltando ao tema, Afonso estava esgotado, sem conseguir pensar em mais uma linha do seu trabalho, começou a fazer carinho na gata com a ponta da caneta enquanto parecia tentar olhar através da parede. Pensou na sua namorada, nas aulas, no que poderia acontecer no ano seguinte, caso conseguisse mesmo se formar. A esta altura a gata, que originalmente era branca, já estava com as costas totalmente luminosas, pintadas de amarelo fosforescente, pela caneta de marcar texto sem tampa.

Afonso... Afonso era o nome do seu avô - pensou ele e imediatamente se transportou para uma cidade do interior, revivendo alguns fragmentos escolhidos do próprio passado, misturados com outros tantos que ia inventando em tempo real. Sua imaginação consumiu mais meia hora do dia, e o sol já vinha baixinho. Enquanto isso a gatinha ronronava no seu colo. Brigite já estava com o peito pintado agora. Afonso falou sozinho alguma coisa aparentemente sem nexo:

- O que é, afinal, um buraco na parede? Qual seu significado? - ele falou e logo parou, arregalou os olhos e continuou - Pronto! Agora tenho certeza! - falou isso e foi ao banheiro, pegou dois chumaços de algodão e enfiou nas orelhas. Talvez acreditasse que seu cérebro estava derretendo.

- Viu, Brigite? No que é que dá ficar trancado em casa estudando, não sair e tal... Muito estudo e pouco sexo... Ou numa dessas isso até é síndrome de abstinência de cerveja - pensou um pouco silenciosamente e concluiu balançando a cabeça e riu de si mesmo.

- Chega! Hoje não rende mais mesmo - tentou se consolar enquanto salvava o trabalho e desligava o micro.

Ele largou a gata no chão e foi em direção da porta com a intenção de sair de casa e arejar. A gata o seguiu em direção à porta e falou:

- Miau!

Este era o único defeito de Brigite: Suas falas eram sempre previsíveis. Mesmo depois de ganhar intimidade, e de ouvir por tardes a fio o seu dono discursar sobre os mais variados assuntos, não ilustrou-se. Seu repertório e vocabulário permaneceram idênticos. Ainda assim, estas três sílabas foram suficientes e Afonso compreendeu o que ela queria e, antes de sair, deixou que a bichana saísse.

Afonso andava pelas ruas tentando esquecer o trabalho por algumas horas. “Vou tomar uma cerveja”, pensou, e foi mesmo. Enquanto isso a tragédia, o pesar se aproximava. Afonso, que só queria ficar ébrio, não poderia imaginar o que estava para acontecer. ATENÇÃO: A seguir teremos de sexo e violência!

Brigite se aproximou de Amarelo, outro da espécie, tentando chamar sua atenção:

- Miau! - (Eu disse que ela era previsível)

Antes mesmo dela ter miado, não só Amarelo, mas todos os felinos machos da vizinhança já haviam percebido sua presença e se aproximaram. O cheiro dela, o timbre e o tom do miado não deixavam dúvidas de que estava no cio. Logo começou a cantoria, miados, gritos, guinchos e outros ruídos que não cabem em substantivos, mas em onomatopéias difíceis de escrever...

Um vizinho do prédio dos fundos, cujo nome não faço a menor idéia, mas vamos chamá-lo Marco Antônio, queria dormir. Ele trabalhava como vigilante e tinha de dormir, pois ainda faltavam três horas para o despertador chamar. Marco Antônio não agüentou. Sujeito agressivo que era, não perdoava. Sonolento, sem sequer levantar da cama, atirou um sapato ao léu. É lógico que errou, mas ao menos dispersou o bando e acabou com o suingue.

Em pouco tempo, não mais do que cinco minutos, a libido foi mais forte que o medo, ainda mais depois que os animais deixaram de crer na pontaria de Marco Antônio. Os gatos retomaram seu ritual, guiados pelo cheiro e pelas súplicas de Brigite. Cinco minutos de silêncio foram mais que suficientes para que o homem cansado já estivesse roncando novamente. Cinco minutos foram o bastante para que os felídeos acreditassem que a barra estava limpa. Ao perceber a barulheira, Marco foi para a janela. Mesmo sonolento, com os olhos bloqueados pela ramela, M.A. (Marco Antônio) pode identificar claramente um dos animais, pois era um escândalo. “Uma mutação ou uma alucinação?”, pensou M.A. Não importa, ele mirou no ser iluminado, amarelo foscorecente. E acertou.

Na cabeça do animal ele acertou o tijolo que utilizava para erguer os pés da sua cama (recomendação de uma tia, M.A. era asmático).

Pesar... (eu disse)...

Mais tarde. Bem mais tarde. Afonso voltou do bar. Na calçada, antes de abrir a porta e aos pés da do prédio, ele reviu o almoço. "A comida era mais bonita ao entrar", comentou, sério. Entrando em casa, mesmo zonzo, lembrou-se de ir ao terraço pra colocar colocar a sua companheirinha para dentro de casa. Foi aí que ele viu...

Segue então uma dramática época de dor e luto.

Afonso perdeu o rumo. Começou a beber (naquele momento e não parou mais). Deixou crescer a sua ridícula barba, parou de tomar banho, tentou matar o vizinho, não conseguiu, foi preso, foi currado na cadeia (naquele momento e não parou mais), teve uma intoxicação alimentar, rodou na faculdade, perdeu a namorada, seus amigos o deixaram, teve cálculo renal (naquele momento e não parou mais), contraiu dívidas e verminose, encravou uma unha, apanhou feito um cão ladrão, encravou outra unha, perdeu peso, tentou o suicídio, não conseguiu, encravou outra unha, apanhou de novo para não perder o costume, foi solto (condicional), procurou emprego, não conseguiu, começou a puxar carros, começou a puxar sacos, encravou mais uma unha, se cortou com uma lata de salsichas, contraiu botulismo das salsichas, contraiu tétano da lata, teve desinteria, morreu cagando.

Todo conto moral, deve ter uma moral no final. Escolha a sua:

( ) Nunca pinte seu gato com caneta marca texto
( ) Nunca entre para a universidade
( ) Nunca pinte seu gato com qualquer tipo de caneta
( ) Nunca deixe seu gato sair para a rua
( ) Nunca pinte seu gato (com qualquer método)
( ) Nunca tenha um gato


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13 outubro 2005

Boca Preta


- Você está com a boca preta. - Falou em tom afirmativo-acusador-interrogativo. Tudo isso ao mesmo tempo.
- Ah! É que... Eu estava comendo amoras. - Esclareceu sem conseguir ser convincente.
- Hmmm... Ceeeerto, ceeeerto! Sei.
- É sério!
- Tudo bem.
- Você está duvidando? Tá? Tá!
- Imagina...
- Porque você sempre duvida de mim? Porque nós já temos que começar a brigar por causa de umas estúpidas amoras? Antes eu não tivesse dito nada. Antes não tivesse comido amoras. Antes nem sequer existissem amoras. Antes as amoras fossem de outra cor ou ao menos não manchassem a boca. Antes você acreditasse em mim. Se pelo menos você acreditasse em mim... Chuif!
- Você não entende também. Pouco importam as amoras. Não são as amoras que me perturbam. Eu até gosto de amoras, embora eu prefira pitangas, ou mesmo jabuticabas. A questão é se você comeu ou não as amoras. O que me incomoda, Clotilde, o que me deixa puto é a atitude...
- Mas que atitude, João Carlos, que diabos de atitude há nas amoras?
- AAAARGH! Você não compreende meeeesmo!
- Agora, além de tudo, vai me chamar de burra! Pois quem teve de pagar um primo para fazer as provas do vestibular de FILOSOFIA não fui eu! Você lembra disso? Hein? Hein? Quando você me conheceu, você não sabia nem o que é chester, como diria o Nei! E o que foi que você deu pro Ricardo em troca do vigésimo lugar naquele vestibular? Um toca-fitas! Você precisa de um primo e uma porcaria de toca-fitas paraguaio para compensar sua deficiência e agora quer falar em “atitude de comer amoras”. Francamente, João Carlos de Almeida Filho!
- Sem mais acusações, Clotilde! Uma coisa de cada vez. Não fuja das amoras!
- E eu lá sou mulher de fugir de amoras?
- Deixe-me voltar ao ponto principal desta discussão, ou seja, as amoras. Recapitulando: Boca preta, hesitação, uma resposta lacônica e insegura “Ah! É que... Eu estava comendo umas amora”...
- Mas que “umas amora”, seu burro! Eu disse: “Eu estava comendo amoras”.
- Que seja. A sua atitude ao me dar esta resposta é que me incomoda. Esta hesitação, Clotilde, é que está acabando comigo. Eu acredito que você tenha comido amoras, mas você poderia ser mais segura. Você também precisa perder esta mania de achar que eu estou sempre duvidando do que você diz.
Pausa para retomar fôlego e pensar em uma saída. Trocando de tática:
- Clô?
- Não me chama assim! Por acaso eu tenho cara de cabelereira? Hein?
- Clotilde... - Lançou o olhar carente.
- Pronto! Era só o que faltava! Armou toda esta cena e agora quer escapar. Humpf, você acha o que? Que eu vou me comover com esta sua cara de cachorro sarnoso?
- Clotilde, meu bem... - Insistiu no olhar.
Ela virou as costas, com medo de ceder. Pegou a bolsa de cima da mesa e, muito nervosa, procurou os cigarros. Onde estavam os malditos cigarros? Irritada, derrubou a bolsa sobre a mesa. A bolsa bateu na beirada do cinzeiro, que sujou o sofá de chenile.
- Mas que porra! Olha o que você me faz fazer, João.
- Clotilde...
- João?



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09 julho 2005

Atração Animal

Sem saber que horas eram e sem qualquer lugar para ir, ele andava pela cidade. Recém acordara e, como sempre, apenas porque tinha fome. Agora que tinha satisfeito o estômago, deixava que suas pernas o guiassem por onde elas quisessem passar, esperando despertar completamente. Praticamente em transe, no topo das pernas que o levavam por praças, becos, ruas e gente, muita gente. Não havia naquele dia nada para que ele estivesse particularmente feliz, nem triste. Andava, sem sequer pensar coisa nenhuma. Era um dia como outro qualquer.
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Talvez tenha sido a luz do sol que atravessava a cortina mal fechada ou o barulho dos carros que a despertara - talvez as duas coisas, ou mesmo alguma terceira coisa, ou as três, ou uma combinação qualquer, enfim. Ela se levantou, se espreguiçou lentamente enquanto enchia os pulmões pra depois soltar um suspiro longo. Sentiu no corpo aquele sol que bem podia ser das dez da manhã. Não que ela se importasse com isso. Respirou fundo novamente e balançou a cabeça rapidamente, como costumava fazer pela manhã, botando a língua para fora e tentando alcançar o próprio nariz. Mais uma de suas manias.
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Ele continuava andando, sentindo-se agora um pouco mais desperto. Ainda deixava que o instinto escolhesse o caminho, só que andava cada vez mais apressado, sem perceber isso. De alguma maneira ele até parecia não estar completamente ali, quer dizer, seu olhar estava fixo em algum lugar ou alguma coisa que não estava ali. Até que, de repente, ele parou. Ela também, e por alguns instantes os dois permaneceram completamente imóveis.
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Não se ouviu nada então, nem qualquer gemido, ruído, muito menos palavra. Menos ainda o barulho dos carros, e de toda aquela gente que passava por ali. Eles se olharam e foi só. Abanaram seus rabos no mesmo ritmo e caminharam juntos: Cão e cadela.


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