09 julho 2005

Atração Animal

Sem saber que horas eram e sem qualquer lugar para ir, ele andava pela cidade. Recém acordara e, como sempre, apenas porque tinha fome. Agora que tinha satisfeito o estômago, deixava que suas pernas o guiassem por onde elas quisessem passar, esperando despertar completamente. Praticamente em transe, no topo das pernas que o levavam por praças, becos, ruas e gente, muita gente. Não havia naquele dia nada para que ele estivesse particularmente feliz, nem triste. Andava, sem sequer pensar coisa nenhuma. Era um dia como outro qualquer.
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Talvez tenha sido a luz do sol que atravessava a cortina mal fechada ou o barulho dos carros que a despertara - talvez as duas coisas, ou mesmo alguma terceira coisa, ou as três, ou uma combinação qualquer, enfim. Ela se levantou, se espreguiçou lentamente enquanto enchia os pulmões pra depois soltar um suspiro longo. Sentiu no corpo aquele sol que bem podia ser das dez da manhã. Não que ela se importasse com isso. Respirou fundo novamente e balançou a cabeça rapidamente, como costumava fazer pela manhã, botando a língua para fora e tentando alcançar o próprio nariz. Mais uma de suas manias.
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Ele continuava andando, sentindo-se agora um pouco mais desperto. Ainda deixava que o instinto escolhesse o caminho, só que andava cada vez mais apressado, sem perceber isso. De alguma maneira ele até parecia não estar completamente ali, quer dizer, seu olhar estava fixo em algum lugar ou alguma coisa que não estava ali. Até que, de repente, ele parou. Ela também, e por alguns instantes os dois permaneceram completamente imóveis.
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Não se ouviu nada então, nem qualquer gemido, ruído, muito menos palavra. Menos ainda o barulho dos carros, e de toda aquela gente que passava por ali. Eles se olharam e foi só. Abanaram seus rabos no mesmo ritmo e caminharam juntos: Cão e cadela.


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03 julho 2005

Pensamentos Concretos

O "O" é um "Q" sem a cauda
Um ponto, um "i" sem o traço
Preto é o branco no escuro
Parede, sem teto, é muro
Sorriso sem dente é gengiva
Mosca sem asa, formiga
Eu sem Manuela...

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A Despedida

Aconteceu logo que Antônio encostou o pé no chão, ao levantar-se naquela que poderia ser uma manhã qualquer. Foi então que percebeu que aquele dia seria diferente. Logo cedo despediu-se da melancolia à qual estava tão bem ajustado, tão acomodado. A tristeza há muito já havia se tornado um hábito. Passara tempo demais preso a seus pensamentos, sempre com as piores perspectivas, sempre os mesmos dias cinza. Naquele dia, embora ainda não soubesse porque, ele cumprimentaria sua companheira, muito além do velho costume. Ele iria às ruas, veria o novamente sol e seus velhos amigos.

Era inútil tentar descobrir as razões daquela euforia repentina. Ele acordara assim, sem ter feito nada diferente no dia anterior: Deitara com o mesmo pijama folgado com listras, no copo ao seu lado a mesma dentadura sorria enquanto ele desejava o mesmo “boa noite” automático antes de virar as costas para Selma e dormir. Mas hoje... “Não importa. Porque estragar um dia desses tentando compreender?” - foi o que ele pensou.

Na rua o sol parecia compartilhar da sua opinião e por isso brilhava forte. Tanto que teve de voltar para casa antes de andar meia quadra. Foi largar o casaco surrado o hábito o fizera vestir. Nas ruas quase todos ficaram alegres ao revê-lo e aproveitaram a euforia do amigo para colocar em dia todos aqueles assuntos e relembrar tudo que se passara. Ele foi capaz de compartilhar aquele sentimento que não compreendia e, entre risadas, pigarros, tosses e ainda mais risadas, contagiando a todos com aquela estranha alegria a tanto esquecida. Terminada a comunhão, cansado e faminto, voltou para casa, onde ainda tentou repartir o que descobrira com a companheira.

Eles conversaram de uma maneira já nem sabiam que eram capazes. Na verdade fazia tanto tempo que já não sabiam se algum dia tinham realmente sido capazes de conversar daquela maneira ou se era uma ilusão. Eles riram, lembraram, perdoaram, reconheceram, choraram, pensaram...

Sabe-se lá quanto tempo levou para que se esgotasse aquela conversa. Se é que ela se esgotou. Provavelmente tenha sido por puro costume que ela se levantou e voltou aos afazeres da casa. Talvez ela precisasse pensar sobre o que acabara de acontecer ou sentisse que ele precisava disso. Seja como for, ela colocou seu avental com cerejas pintadas à mão, sacou a espoja e começou a lavar a louça com a cabeça ainda cheia de um sorriso enorme e de memórias efervescendo.

Sentado à mesa da cozinha, isolado em seus pensamentos, Antônio podia ver quanta vida tinha desperdiçado e o quanto tinha realmente aproveitado. Afinal, não fora tão ruim assim. Olhando pra trás, por um momento, sentiu-se ridículo por seu longo período de ostracismo. De repente tantas coisas que havia dito e feito lhe pareceram tolices, tantas dúvidas pareceram evidentes e claras. Podia finalmente ver claramente. Sentiu-se dono de uma verdade tão completa, tão consistente que quase podia tocá-la.

Aproximou-se da companheira e abraçou-a forte.

- Desculpe-me, não pude evitar.
- O que você quer dizer?
- Adeus.
- Adeus, querido.

A sintonia era tanta que ela compreendeu, sem que ela explicasse nada. Ele foi para o quarto arrastando os pés, deitou e dormiu. Ela sabia que não deveria chorar por ele. Chorou então por ela, que sentiria falta do amigo.

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